Volume 2

Capítulo 0074: Na floresta escura

Atualizado em: 10 de março de 2024 as 16:49

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Foi uma manhã fria e cinzenta

Ninguém disse uma palavra sobre o que aconteceu na noite passada. Tudo o que se podia ouvir era o som de cascos esmagando galhos e folhas secas conforme cavalgavam em silêncio pela floresta.

Mas Siegfried ainda sentia a cabeça arder, onde o barão Kessel quase o queimou com uma tocha improvisada. Seu coração disparava só de lembrar do incidente.

As chamas eram tão fortes que teve de fechar os olhos ou ficaria cego, mas quando o calor lambeu sua testa, acabou. Os recrutas o soltaram e o lorde jogou a madeira fora, rindo como se tivesse acabado de escutar uma boa piada:

— Limpa essas lágrimas, garoto. Cê tem culhões. Agora entendi porque o conde gosta de você. Foi mal aí se te assustei, mas tem que entender, nem tudo o que ouvi a seu respeito foram coisas boas. Tinha de ter certeza quanto ao seu respeito, e agora tenho.

Depois disso, foi como se nada tivesse acontecido.

Os recrutas voltaram a conversar, mas dessa vez sobre as vezes em que quase morreram. Cada um contando vantagem sobre como mantiveram a coragem ou fizeram comentários inteligentes antes de escapar. Exageros criativos, na melhor das hipóteses.

Mas Siegfried mal conseguiu dormir naquela noite e agora estava cansado.

Jamais admitiria em voz alta, talvez nem para si mesmo, mas seu corpo o entregava. De vez em quando pegava as suas mãos tremendo e o seu coração acelerava do nada.

Medo.

Tinha esquecido da sensação.

Sentiu isso na sua primeira batalha, mas de uma forma diferente. Aquele era o tipo de medo que o rapaz só conheceu após se tornar um mercenário e lutar ao lado de estranhos. Na sua primeira vez, tão logo recebeu seu pagamento, foi atacado na estrada pelos próprios ex-companheiros. E isso nem foi a pior coisa que tentaram fazer com ele.

Foi quando entendeu: ali não tinha amigos.

Bastava uma ordem e aqueles homens cavalgando ao seu lado abririam sua garganta sem pensar duas vezes. Sempre soube disso, mas a vida como guarda o deixou mole.

“Da próxima vez, serei um mercenário.”

Já se aproximava do crepúsculo quando acharam algo na parte mais escura da floresta, onde as árvores eram secas e enegrecidas, como se um grande incêndio as tivesse devorado.

Foi só quando as folhas das árvores se agitaram e começaram a crocitar que eles perceberam não se tratar de folhas, mas de corvos. Centenas deles, acocorados em galhos secos. Sem luz e em silêncio, suas penas negras se confundiam com a vegetação noturna, mas quando um galho seco se partiu sob os cascos de um dos cavalos, eles bateram as asas e levantaram voo, grasnando irritados.

— Espadas! — gritou o lorde Kessel.

Siegfried obedeceu, mas não conseguia ver nada além de penas negras em todas as direções. Por pura sorte, partiu uma ave em duas, quando veio voando contra o seu rosto. E foi isso.

Durou menos de um minuto, então um turbilhão de asas negras subiu e se espalhou pelo céu, antes de se separar e desaparecer na escuridão.

Sem os corvos, a luz da lua atravessou os galhos secos das árvores, iluminando o canto escuro da floresta em que estavam.

Foi quando viram as ruínas de um pequeno povoado escondido em uma clareira. Não mais do que três casas, ou o que restava delas; tinham sido queimadas até o chão, com apenas algumas paredes de madeira enegrecida ainda de pé, mas nenhum corpo.

Siegfried desmontou e se aproximou, mas a lama era mais funda perto das construções, por isso teve alguma dificuldade. Quando passou os dedos pela madeira enegrecida e viu as pontas ficarem sujas de fuligem, teve certeza:

— Não faz muito tempo que isso aconteceu. Alguns dias, talvez.

— Vamos dar uma olhada — disse o barão. — Se espalhem, mas não vão muito longe.

Foi o que fizeram.

Estava de noite, mas a lua ajudava um pouco. Os seus olhos já se acostumavam com a escuridão e o palafrém tinha passos firmes. Podia ter ido com um parceiro, como alguns dos recrutas fizeram, mas não confiava em nenhum deles.

Avançou pouco mais de vinte ou trinta metros ao norte, até perder os outros de vista. As árvores ali não tinham sido queimadas, mas nada havia para ser encontrado além de cobras peçonhentas que assustaram a sua montaria e quase o derrubaram no chão por duas vezes.

Já estava dando meia-volta, quando ouviu um galho seco se partir e parou.

— Quem está aí!?

Nenhuma resposta.

Devia ser sua imaginação. Nada além disso. Um animal na melhor das hipóteses. Mas então ouviu novamente e desta vez viu também algumas folhas caírem de uma das árvores.

Siegfried sacou a espada e levou o palafrém até o local, dando uma boa olhada para cima. Uma sombra se moveu por entre os galhos, mas não o notou, então virou o cavalo e pressionou de leve as pernas em volta dele, fazendo o animal escoicear o tronco com as patas traseiras.

A árvore sacudiu, os galhos se quebraram e uma chuva de folhas caiu sobre ele, junto com o seu espião, que atingiu o chão com tudo.

Antes que tivesse a chance de se levantar, Siegfried levou o cavalo em sua direção e fez um círculo ao seu redor, com a espada bem apontada para o seu rosto:

— Não se mexa! Quem é você?

A garota levantou as mãos:

— P-por favor, não me mate…

Siegfried foi o único a não voltar de mãos vazias.

Revistaram a garota em busca de armas, mas ela nada tinha além do seu vestido velho e surrado. Devia ter uns dezesseis anos, mas era tão pequena e magra que nem se deram ao trabalho de amarrá-la; parecia um desperdício de corda.

Tinha cabelos loiros, embora ele só tenha notado isso quando a garota se sentou perto da fogueira e devorou uma batata assada em duas dentadas, lambendo os dedos sujos de gordura e lama, um pouco antes de esvaziar um odre de água tão rápido que quase se afogou.

Um pouco da água escorreu pelas suas mãos e lavou a sujeira, revelando marcas de queimadura e arranhões do tipo que se ganhava tentando escalar uma árvore rápido demais… Ou se protegendo das bicadas de corvos.

Quando ela terminou de beber, sorriu e disse:

— M-muito obrigada, vocês salvaram minha vida.

— Não há de quê — disse o barão. — Essa era a sua vila?

— Anham. Quero dizer, sim… Milorde. Eu, minha mãe e mais algumas pessoas que a gente achou na estrada. A gente construiu. Viemos da marca de Helder no ano passado. Ouvimos que aqui era seguro pros refugiados, mas o outono tava acabando e tinha esses bandidos, então a gente não conseguiu ir mais longe. Um dos rapazes era carpinteiro, então derrubamos algumas árvores e fizemos as casas. E-espero que o senhor nos perdoe pela ousadia. Não queríamos derrubá-las sem permissão, mas–

— Não se preocupe com as árvores. Me diga, o que aconteceu aqui? Foram os rebeldes?

— N-não, senhor. Quero dizer, acho que não. Foi alguns dias atrás, eu acho… Uma noite os lobos vieram e atacaram. Não sei ao certo quantos eram, mas um deles… Um deles abriu a garganta da minha mãe bem ali. Os rapazes até espetaram ele com umas lanças, mas então um monte de gente apareceu do nada. Vi uma lança atravessar o peito de um deles, mas nem fez cócegas, ele continuou em frente e agarrou o pescoço de um dos garotos… E-eu não sei o que aconteceu depois disso. Todo mundo começou a gritar, então eu corri. Bati em uma árvore, escalei e fiquei lá até ele me achar. Obrigada.

A garota deu um olhar para Siegfried e sorriu. O seu rosto estava cheio de pequenos cortes e o cabelo, desgrenhado. Não podia dizer que era bonita, mas certamente não era feia.

— Se não for muito atrevimento, senhor, poderia me dizer seu nome?

— Siegfried.

Ela sorriu como se tivesse acabado de receber um presente, então se apressou em dizer:

— E-eu sou Lili! Muito prazer!

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