Volume 1

Capítulo 0034: O herói da vila

Atualizado em: 16 de julho de 2023 as 16:14

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A triagem dos escravos levou a noite toda.

Até Siegfried e Gwen foram obrigados a ajudar. Qual o seu nome? De onde vem? A quanto tempo esteve preso? Como te pegaram? Quem eram os compradores? Quem estava envolvido? Onde foi mantido? Por quais lugares passou?

As respostas eram sempre muito parecidas.

Aqueles que vieram do vilarejo tinham sido pegos a não mais do que duas ou três semanas, quase sempre da mesma forma; vendidos por seus pais ou sequestrados durante a noite. Não era crime vender seus filhos, mas sequestro sim.

Haviam também aqueles vindos de outro lugares, como Vila da Truta, Cidade Pequena e até mesmo algumas comunidades fora do condado. Estes estavam em piores condições. Uma velha meio cega tinha sido capturada cinco meses atrás e já estava à beira da desnutrição.

— Eles não escolhem — ela disse. — Pegam qualquer um que podem, levam pra longe, assim nossos parentes não nos encontram, e depois tentam nos vender. Lavam, dão roupas bonitas e inventam histórias. Diziam que eu era a mãe de um fidalgo qualquer, ou a última herdeira de um belo castelo lá pra bem longe. Mas ninguém quer uma velha.

Ela deu um sorriso triste.

— As mocinhas mais novas vão embora rápido, alguns rapazes também. Certa vez, vi duas irmãs, coisinhas bem bonitinhas, mais novas do que minhas netas. Foram trazidas pela manhã e vendidas antes do anoitecer. Essas são as sortudas. Se demoramos muito pra sermos vendidas, eles começam a nos deixar de lado. Tiram nossas roupas bonitas e dão pras outras que acabaram de chegar. Depois disso, não se importam mais em nos dar o que comer, ficamos com as sobras, quando há alguma, e podemos beber um copo d’água a cada dois ou três dias. Se morremos, nos deixam nas jaulas por mais alguns dias, pra garantir que estejamos mortas mesmo. Mas nunca nos soltam.

As outras diziam coisas parecidas, mas nenhuma passou tanto tempo em cativeiro como a velha.

O conde queria um registro de todas as informações coletadas, mas Siegfried não sabia escrever no idioma comum. Por sorte, Gwen sim. A garota fazia a pena deslizar pelo papel rápida e graciosamente, como se fosse uma professora ou outra estudiosa qualquer.

— Onde cê aprendeu a escrever?

— No mesmo lugar que aprendi matemática. Uma ladra tem que saber das coisas. Cê também devia aprender.

— Mercenários não precisam escrever.

— Mas o escudeiro de um lorde sim.

— …

Já era de madrugada quando mandaram embora a última escrava liberta. A essa altura, a multidão já tinha sido reduzida a um punhado de gente. Quando a garota saiu, correu para os braços de uma mulher mais velha e as duas caíram aos prantos, mas não foram as únicas.

Siegfried estava ajudando a retirar os vendedores de escravos, acorrentados uns aos outros pelos tornozelos, quando viu um casal de idosos se aproximar do conde.

— M-meu lorde — disse a mulher —, por favor. Minhas netas… As encontraram? Por favor. São tudo o que nos resta.

— Sinto muito, essa foi a última. Ainda temos seis mortos por limpar e identificar, mas terá de esperar por amanhã.

A idosa caiu de joelhos e chorou; o marido se abaixou com dificuldade e a abraçou. Alguns se juntaram a eles em seu pesar, chorando pelos próprios parentes perdidos, enquanto outros se conformavam com a realidade e voltavam para suas casas.

Quando chegaram ao Salão dos Poucos, foram recebidos por guardas sonolentos e um silêncio desconfortável, meio afugentado pelo som das botas de metal raspando na terra de areia batida em passos preguiçosos.

Siegfried levou o cavalo do conde até o estábulo e viu a primeira neve do inverno cair; pequenos flocos transparentes, como chuva cristalizada.

Foi o último a chegar ao salão. A essa altura, os prisioneiros já tinham sido levados para as celas e os guardas estavam deitados perto do fogo, imersos em um sono profundo.

Encontrou Gwen dormindo aconchegada em um manto de pele, logo abaixo de uma tocha, então se juntou a ela. Tinha escolhido um ótimo lugar, a madeira era quente e o chão, não muito duro.

Adormeceu rápido e sonhou com morte.

Viu um cavaleiro atravessar as ruínas de uma vila qualquer, triturando ossos carbonizados sob seus pés, enquanto o fogo tremulava tímido no metal negro da sua armadura de espinhos.

Siegfried o seguiu até uma cabana limpa e aconchegante. A única que não tinha sido tocada pelas chamas.

Lá dentro, encontraram a mulher mais bonita que o rapaz já tinha visto. Não devia ter mais do que 26 anos, com cabelos negros lisos e brilhantes que caíam até às suas costas e olhos castanhos doces como mel. Quase não viu a criança que se escondia atrás dela.

A mulher caiu de joelhos e implorou, mas quando fez isso, foi para Siegfried que olhou, não para o cavaleiro.

“Eu não posso ajudar.”

Ela pareceu ouvir seus pensamentos. Seu rosto perdeu o brilho em uma expressão triste, e então ela lhe deu um sorriso gentil que fez seu coração doer, pouco antes do cavaleiro arrancar a sua cabeça com um golpe.

As tochas se apagaram de imediato e a casa ruiu. Quando voltou a enxergar, viu corpos pelo chão e os reconheceu. O taverneiro com a garganta cortada, uma criança partida ao meio, outra decapitada, e uma terceira com um buraco no peito, e até Thorbert, sem uma mão e com as costas destruídas por uma dúzia de facadas.

Só então percebeu que a espada ensanguentada estava em suas mãos e o cavaleiro negro havia desaparecido.

Acordou, empapado de suor e com o coração batendo tão rápido que se esqueceu de como respirar. Segurou o peito e inspirou fundo uma vez e mais outra, até se acalmar.

Já era de manhã, mas ainda estava cedo. Haviam servos trazendo o desjejum e limpando, mas a esmagadora maioria dos guardas dormia e não dava sinais de que acordariam tão cedo.

Siegfried se levantou e foi até a mesa, sentando ao lado de Gwen, que comia um pouco de pão e manteiga, com leite.

Uma mulher mais velha, bem para o fim dos seus vinte anos, lhe trouxe uma bandeja com mingau e um jarro de leite. O rapaz se serviu, mas ela permaneceu.

— Senhor — disse —, eu só queria agradecer. Soube o que fizeram ontem e vi os prisioneiros. Meu irmão foi levado anos atrás por gente assim…

Os olhos dela brilharam, mas não chorou.

— Elyon é bom por finalmente trazer o castigo que pessoas assim merecem.

E então foi embora.

Igmar entrou no salão alguns momentos depois, acordando seus homens a pontapés e ordenando que entrassem em forma no pátio de treinamento. Eles obedeceram, com os últimos empurrando os da frente, ou talvez estivessem apenas buscando apoio em suas costas para não cair de sono, fosse como fosse, logo todos estavam correndo.

O velho capitão lhe deu um olhar carrancudo ao atravessar o salão, caminhando atrás dos seus homens, pronto para ‘incentivar’ aqueles que se demorassem demais.

“Mais um dia sem treinar”, pensou, enquanto tomava o mingau. “Talvez seja melhor eu simplesmente ir pro pátio, e se ele não gostar… Bem, pelo menos já dá um treino interessante.”

Conforme o dia seguia, o número de garotas ao seu redor também aumentava. Para onde olhava, havia sempre um pequeno grupo delas, e quando seus olhares se encontravam, desviavam o rosto e soltavam risinhos.

As mais ousadas vinham elogiá-lo, mas bastava notarem Gwen ao seu lado para irem embora, não que ele a tenha visto fazer qualquer coisa para provocar isso.

Em pouco tempo, o seu nome estava na boca de todas as garotas do Salão dos Poucos.

Nada sabiam a seu respeito, mas o mistério só parecia deixá-las mais interessadas, e cada uma criou a própria história sobre sua origem.

— Ouvi dizer que ele é o filho bastardo do conde com uma sacerdotisa, que foi criado como um cavaleiro na Ordem da Alma Branca e voltou por causa de uma profecia.

— Mentira! Sério?

— É, menina, tô te falando. Você acha mesmo que ele é só um mercenário? É só abrir os olhos. Ele é a cara do conde. E aquele jeito dele. Você viu como ele nem piscou no julgamento? Foi como um cavaleiro de verdade. E ainda salvou aquela garotinha, mesmo depois de o irmão dela ter tentado acusá-lo falsamente.

— Agora que você disse isso, faz sentido. Não sei como não percebi antes.

Mas Siegfried estava distraído demais para se importar com o que diziam.

“Só uma tem cabelos castanhos”, percebeu.

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